Imunidade parlamentar e discurso de ódio no Brasil
Parliamentary immunity and hate speech in Brazil
_____
eleonora.ceia@ibmecrj.br
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Brasil
_____ RAIGAL. Revista
Interdisciplinaria de Ciencias Sociales Nº3, octubre 2016-marzo 2017 (Sección
Dossier, pp. 16-26) e-ISSN
2469-1216 Villa
María: IAPCS, UNVM http://raigal.unvm.edu.ar Recibido:
05/06/2017 - Aprobado: 16/07/2017
Resumo
O presente artigo discute a relação entre o instituto da
imunidade parlamentar e o direito fundamental à liberdade de expressão a partir
da interpretação sistemática dos princípios da Constituição brasileira de 1988.
A principal hipótese do trabalho é a de que a imunidade parlamentar no Brasil
não abarca o chamado discurso de ódio, que configura manifestação ilegítima do
pensamento de acordo com a Constituição brasileira. A recente jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal confirma essa hipótese ao consagrar que a imunidade
parlamentar não é um instituto de natureza absoluta, sujeitando-se à ponderação
com o princípio da dignidade humana.
Palavras-chave: Imunidade parlamentar; Liberdade de expressão;
Discurso de ódio; Brasil; Supremo Tribunal Federal
Abstract
The present article discusses the
relationship between the institute of parliamentary immunity and the
fundamental right of freedom of speech from a systematic interpretation of the
principles laid down in the Brazilian Constitution of 1988. The main hypothesis
of the work is that in Brazil the parliamentary immunity does not include the
so-called hate speech, which configures an unlawful manifestation of thought
according to the Brazilian Constitution. The recent jurisprudence of the
Brazilian Supreme Federal Court confirms this hypothesis in providing that the
nature of the parliamentary immunity is not absolute and consequently it can be
weighed against the principle of human dignity.
Keywords: Parliamentary
immunity; Freedom of speech; Hate speech; Brazil; Brazilian Supreme Federal
Court
A promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988 (CRFB/88) constitui o principal
marco jurídico do período da redemocratização do País, após o fim de regime
ditatorial civil-militar (1964-1985). O texto constitucional, com efeito,
evidencia em diferentes passagens o seu desejo de romper com a ordem
constitucional pretérita. Servem de exemplo: a vedação da censura nos termos
dos artigos 5º inciso IX e 220 §1º; a proibição da cassação de direitos
políticos conforme o artigo 15 caput; mas, sobretudo, a qualificação da
República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito segundo o
seu artigo 1º caput.
O Estado Democrático de Direito
caracteriza-se por ser um Estado onde a aquisição e o exercício do poder
político são legítimos, ou seja, todos e todas têm a capacidade, em condições
iguais, de participar de forma ativa e responsável da vida política do Estado.
O Estado Democrático de Direito apresenta duas dimensões: uma organizatória e
procedimental; e outra material. A primeira diz respeito à garantia dos
seguintes princípios: separação dos Poderes, legalidade estrita e da segurança
jurídica, entre outros. Por sua vez, a segunda ressalta a proteção do princípio
da dignidade humana[1],
do qual decorrem os direitos fundamentais em geral (individuais, coletivos e
difusos). Em síntese, cuida-se de um modelo de Estado que pretende se mostrar
como uma evolução em relação aos modelos liberal e social de Estado, ao
conjugar a participação política, as liberdades individuais e a justiça social.[2]
Nessa perspectiva, a noção de democracia,
intrínseca ao Estado Democrático de Direito, baseia-se no chamado princípio
majoritário – tomada de decisão livre por uma maioria, da qual resultam normas
vinculantes para todos – conjugado com a imposição do respeito pelas minorias.
A proteção das minorias dentro de um governo da maioria pressupõe, de um lado,
o direito das minorias de participarem do processo deliberativo e, de outro, a
submissão da maioria aos limites constitucionais, a saber, os direitos
fundamentais, os quais:
[...] representam a essência da proteção das minorias,
visto que uma violação de um direito fundamental, na condição de direito
subjetivo individual, poderá justificar a impugnação (pelos meios postos à
disposição pelo Estado de Direito) de atos que resultam da deliberação das
maiorias, razão pela qual os direitos fundamentais
costumam ser também chamados (Dworkin) de trunfos contra a maioria.
[Grifo do texto original][3]
O funcionamento efetivo do regime democrático
serve-se de variados institutos, dentre os quais merecem destaque as imunidades
parlamentares, que consistem nos direitos, deveres e prerrogativas dos membros
do Poder Legislativo. Há a imunidade material – que assegura a liberdade de
opinião, palavra e voto ao parlamentar – e a imunidade formal, que protege o
parlamentar de prisões ilegais ou arbitrárias.
Originadas da Inglaterra, as imunidades
parlamentares têm como propósito garantir que os congressistas desempenhem suas
funções constitucionais com ampla independência e liberdade. Vale dizer,
objetivam a preservação do princípio da separação dos Poderes. Logo, as
imunidades parlamentares existem para proteger a instituição do Poder
Legislativo, e não a pessoa individualmente considerada do parlamentar. Ao lado
disso, cumpre enfatizar que apenas as manifestações estritamente ligadas à
atividade parlamentar são abarcadas pela imunidade, sob pena desta se
transfigurar em verdadeiro privilégio e, consequentemente, violar o princípio
republicano.[4]
O problema proposto pelo presente trabalho é
determinar se no Brasil há limites para a imunidade material parlamentar, ou
seja, se o membro do Poder Legislativo, no exercício das funções inerentes ao
seu mandato, possui um direito fundamental absoluto à liberdade de expressão. A
partir da revisão bibliográfica das principais obras a respeito do tema
defende-se a hipótese de que a imunidade parlamentar no Brasil não abarca o
chamado discurso de ódio, que configura manifestação ilegítima do pensamento de
acordo com a CRFB/88.
O objetivo do artigo é, portanto, discutir a
relação entre o instituto da imunidade parlamentar e o direito fundamental à
liberdade de expressão a partir da interpretação sistemática dos princípios da
CRFB/88. A análise desta questão justifica-se pelo crescente número de casos de
discursos de ódio protagonizados por parlamentares brasileiros no desempenho
das suas funções congressuais. Entre tais casos destacam-se as manifestações do
deputado federal Jair Bolsonaro, quem responde a processo criminal por
incitação ao crime de estupro perante o Supremo Tribunal Federal (STF)[5].
O artigo estrutura-se da seguinte forma: a
primeira seção analisa a regulação do instituto da imunidade parlamentar pela
CRFB/88. Em seguida, a segunda seção cuida do exercício da liberdade de
expressão no direito brasileiro, ressaltando a conceituação de discurso de
ódio. Após, a terceira seção examina a jurisprudência do STF com respeito ao
escopo e aos limites da inviolabilidade do parlamentar quanto as suas opiniões
e palavras. E, por último a conclusão apresenta em síntese os principais
argumentos e resultados produzidos pelo trabalho.
A origem das imunidades parlamentares remonta
ao ilustre documento resultante da Revolução Gloriosa de 1688, na Inglaterra, a
saber, a Bill of Rights, que consagrava a
liberdade de palavra ao parlamentar. Esse direito protegia o parlamentar dos
arbítrios do monarca, garantindo ao parlamentar a certeza de que não seria
questionado perante qualquer tribunal em razão de suas opiniões proferidas no
Parlamento.
Posteriormente, outros países (Estados
Unidos, França e Alemanha, por exemplo) incorporaram ao seu direito o instituto
das imunidades parlamentares, mantendo o entendimento originário de que se
trata de instituto de proteção do Parlamento frente às pressões dos demais
Poderes, e não da pessoa do parlamentar. Por consequência, nesses países a
imunidade material parlamentar inclui tão somente as opiniões e palavras
proferidas dentro do local do Parlamento e que sejam diretamente vinculadas ao
exercício do mandato parlamentar.[6]
Por sua vez, outro grupo de países (Espanha,
Itália, Argentina e Brasil, por exemplo) adotam uma concepção de imunidade
parlamentar ampla, que enfrenta críticas, uma vez que permite uma aplicação
distorcida do instituto.
Tais países, em geral, admitem que as imunidades,
materiais e formais, alcançam o parlamentar dentro ou fora do recinto
congressual, bem como os imuniza nas esferas cível, administrativa e penal, por
votos, palavras ou opiniões praticados no exercício do mandato legislativo
(prática in officio), ou em função dele (prática propter officium).[7]
Contudo, como será visto adiante, a recente
jurisprudência do STF defende uma posição mais moderada com relação à aplicação
da imunidade material parlamentar. Vale dizer, pretende limitar a aplicação da
imunidade apenas à atividade política do parlamentar e dentro dos limites
fixados pelos princípios constitucionais, de forma a coibir regalias e abusos.
A Seção V da CRFB/88 (artigos 53 a 56)
disciplina o chamado Estatuto dos Congressistas, que consiste no conjunto de
direitos, deveres e prerrogativas de deputados e senadores federais. A eles são
concedidas: i) a prerrogativa de foro perante o STF; ii) a imunidade material,
isto é, os parlamentares são invioláveis nas suas opiniões, palavras e votos; e
iii) a imunidade formal, os parlamentares não estão sujeitos à prisão, salvo em
caso de flagrante delito de crime inafiançável.
Importa frisar que tanto a imunidade formal
quanto a imunidade material são aplicadas quando o parlamentar esteja exercendo
o mandato ou quando estiver desempenhando atividade em razão do mandato, dentro
ou fora do recinto do Congresso Nacional.[8] Em
função do problema central do trabalho a chamada imunidade material será
analisada com mais atenção.
Nos termos do artigo 53 da CRFB/88 “os
deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de
suas opiniões, palavras e votos”. Trata-se de relevante prerrogativa
institucional, visto que possibilita o membro do Poder Legislativo de
discursar, opinar e votar com liberdade, isto é, livre de constrangimento ou
pressão.
Esse dispositivo exclui qualquer tipo de
responsabilidade (penal, civil, administrativa ou política) da pessoa do
parlamentar pelo conteúdo dos seus votos, opiniões e palavras emitidos, por
qualquer meio, dentro ou fora do recinto do Congresso Nacional, desde que no
exercício do seu mandato ou em função do mesmo (em atividades imputáveis ao
exercício do mandato). Em outros termos, o parlamentar será responsabilizado
caso não se comprove a relação de causalidade entre a manifestação de
pensamento e o exercício do mandato político.
Para fins de defesa da conclusão do presente
trabalho vale criticar a interpretação ampla do termo “quaisquer” do artigo 53.
Isso porque uma interpretação deste tipo permitiria que qualquer palavra,
opinião ou discurso parlamentar – inclusive aqueles de incitação ao ódio, à
discriminação e à violência – fosse considerado inviolável, não importando se a
manifestação é vinculada ao mandato ou não[9].
Portanto, argumenta-se aqui em favor de uma
inviolabilidade relativa, isto é, a imunidade parlamentar não pode servir de justificativa
para manifestações contrárias aos valores constitucionais, como, por exemplo,
discursos racistas e discriminatórios em razão de gênero, origem social,
orientação afetiva etc. Nessas hipóteses, a imunidade material deveria ser
afastada e o parlamentar responsabilizado nas esferas penal, civil,
administrativa e política.
A liberdade de expressão ou de manifestação
do pensamento abrange toda opinião, convicção, comentário ou julgamento sobre
qualquer tema, de interesse público ou particular, ou sobre qualquer pessoa
(pública ou privada), como também a comunicação sobre a veracidade dos fatos
(informações).
Daí a importância da liberdade de expressão
para a formação da personalidade do indivíduo, bem como para a preservação do
regime democrático, dado que assegura a pluralidade de ideias e a liberdade de
criticar agentes políticos como forma de fiscalizar a atividade estatal.
A liberdade de expressão é definida como um
direito defensivo, isto é, exige que o Estado se abstenha de exercer censura,
isto é, de interferir no conteúdo da manifestação do pensamento. Nesse sentido,
a CRFB/88 veda a censura, que consiste no controle prévio do Estado sobre o
conteúdo de uma mensagem. Contudo, a proibição da censura não impede, que o
indivíduo seja responsabilizado posteriormente pelas consequências cíveis e
penais daquilo que expressou.
Logo, a liberdade de expressão não é um
direito fundamental de natureza absoluta. É o que preceitua o artigo 220 caput
da CRFB/88: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição”
[Grifo da autora]. Quer dizer, a liberdade de expressão é um direito fundamental,
cujo exercício pode ser limitado (posteriormente à manifestação) em favor dos
demais valores constitucionais, sobretudo, do princípio da dignidade humana.
Isso porque tal princípio é a diretriz para a interpretação de todo ordenamento
jurídico, que proíbe qualquer tentativa de instrumentalização ou inferiorização
da pessoa humana por parte do Estado ou de qualquer outro indivíduo.
Seguindo esta linha, o STF entende que a
liberdade de expressão não pode abrigar manifestações de cunho racista, ou seja,
o discurso de ódio não é tolerado pela ordem constitucional brasileira. Tal
interpretação foi estabelecida pelo STF no julgamento do chamado “Caso
Ellwanger”[10],
no qual restou decidido pela maioria dos Ministros do STF que a propagação de
ideias antissemitas configura crime, pois incita à discriminação racial e,
portanto, não é conduta amparada pela liberdade de expressão. No conflito entre
o princípio da dignidade da pessoa humana e a liberdade de expressão, o
primeiro deve prevalecer.
Liberdade de expressão. Garantia constitucional que
não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre
expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo
imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais,
por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites
definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira
parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o
"direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não
pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os
delitos contra a honra.[11]
O discurso de
ódio é a manifestação tendente a insultar, constranger ou intimidar minorias,
de modo a instigar violência ou discriminação contra essas pessoas. Em geral,
tal discurso compreende ideias que violam a dignidade de pessoas em razão da
sua etnia, religião, gênero, origem social ou orientação afetiva. Em outras
palavras, o discurso de ódio ofende e inferioriza as pessoas em razão da sua
identidade individual ou coletiva, elemento essencial da dignidade humana[12].
O sistema
constitucional brasileiro não admite a proteção do discurso de ódio. Conforme
anteriormente explicado, no embate entre a dignidade humana e a liberdade de
expressão, a primeira deve prevalecer, devido à sua condição de princípio
norteador de todo o ordenamento jurídico, de que derivam os direitos
fundamentais. A lógica do constituinte de 1988 é contrária à censura. Logo, o
indivíduo não pode ser proibido de forma preventiva de manifestar o seu
pensamento, porém, pode ser responsabilizado posteriormente caso sua
manifestação infrinja a dignidade humana, como é o caso do discurso de ódio.
O presente
trabalho defende que tal responsabilização seja aplicada também no caso dos
parlamentares. Na hipótese de um membro do Poder Legislativo, no exercício da
sua função parlamentar, proferir discurso de ódio, violando, o princípio
basilar da República (a dignidade humana), sua imunidade material deve ser
afastada e gerar, com isso, a sua responsabilização nas esferas cabíveis. Caso
contrário, haveria um instituto de cunho absoluto no direito brasileiro, o que
contraria a interpretação harmoniosa entre os princípios constitucionais[13].
O STF possui
jurisprudência consolidada no sentido de que a imunidade material do artigo 53
da CRFB/88 compreende tão somente atos funcionais, isto é, atos estritamente
conectados ao exercício do mandato parlamentar. Nesse sentido, afirmou no
julgamento do Inquérito 2.134, Relator Ministro Joaquim Barbosa, de março de
2006, que “a imunidade material prevista
no art. 53, caput, da
Constituição não é absoluta, pois somente se verifica nos casos em que a
conduta possa ter alguma relação com o exercício do mandato parlamentar”[14].
Da mesma forma, o STF acompanha a doutrina ao
entender que a inviolabilidade parlamentar nas suas palavras e opiniões protege
o membro do Poder Legislativo dentro e fora do recinto do Congresso Nacional.
Quer dizer, a imunidade material não se restringe ao espaço físico do
Parlamento. Assim, a inviolabilidade se estende também para atos realizados
fora do Congresso Nacional, inclusive para entrevistas jornalísticas;
transmissão, para a imprensa, do conteúdo de pronunciamentos ou de relatórios
produzidos nas Casas Legislativas; e também para as declarações emitidas aos
meios de comunicação[15].
Todavia, a jurisprudência do STF diferencia
as manifestações declaradas dentro e fora do recinto do Parlamento quanto à
relação de causalidade entre a manifestação e a função parlamentar. Caso a
manifestação ocorra dentro do recinto do Congresso pressupõe-se necessariamente
a favor do nexo de causalidade entre a manifestação e o exercício da atividade
parlamentar e, por consequência, a favor da imunidade. Ao revés, caso a
manifestação ocorra fora do recinto do Congresso, faz-se necessário comprovar a
relação de causalidade entre a manifestação e a função parlamentar. Nesse
sentido, declarou o Ministro Carlos Britto no Inquérito Nº 1.958, julgado em
2004:
Assim, é de se distinguir as situações em que as
supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento. Somente nestas
últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento é de se perquirir da chamada
“conexão com o exercício do mandato ou com a condição parlamentar” (Inq 390 e
1.710). Para os pronunciamentos feitos no interior das
Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão
com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade.
Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir
eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa. [Grifo da autora][16]
É criticável o posicionamento do STF acima
exposto. Cabe questionar sim o conteúdo da manifestação do pensamento feita
dentro do recinto parlamentar, sobretudo quando caracterizado o discurso de
ódio na fala do membro do Poder Legislativo.
O discurso de ódio no âmbito parlamentar já
foi examinado pelo STF no Inquérito 3.590/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado
em agosto de 2014. Tratava-se de denúncia proposta pelo Ministério Público
Federal contra o deputado federal Marco Feliciano por proferir declaração de
cunho discriminatório contra a comunidade LGBT, por meio da rede social Twitter. O STF, contudo, rejeitou a denúncia com base na
atipicidade do fato, embora reconhecesse o conteúdo reprovável da declaração do
parlamentar[17].
Como já explicitado defende-se aqui o
afastamento da inviolabilidade da palavra do membro do Poder Legislativo quando
a manifestação deste for de cunho odioso, discriminatório ou atentatório contra
minorias com fundamento no Estado Democrático de Direito. A defesa da
relatividade da imunidade material parlamentar é justificada pelo número
crescente de casos de discursos de ódio protagonizados por políticos
brasileiro. Um caso concreto de repercussão nacional será analisado a seguir.
Jair Bolsonaro é um político brasileiro, atualmente cumprindo seu sexto
mandato como deputado federal, filiado ao Partido Social Cristão (PSC). Defende
posições de cunho nacionalista e retrógrado, na sua grande parte, contrárias
aos direitos de minorias. De fato, o parlamentar em questão é conhecido por
suas declarações de natureza discriminatória e violenta.
Durante a votação do impeachment da
Presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016, o referido deputado fez homenagem
a conhecido torturador da ditadura civil-militar brasileira[18].
Mais recentemente, em abril de 2017, durante um evento no Clube Hebraica,
instituição tradicional da comunidade judaica do Rio de Janeiro, o deputado
proferiu declaração de conteúdo racista, ao afirmar que membros de comunidades
quilombolas “não servem nem para procriar”[19].
Atualmente o deputado responde a dois
processos criminais perante o STF pela suposta prática dos delitos de incitação
ao crime de estupro e injúria. Segundo os autos dos processos, os crimes teriam
sido cometidos em dezembro de 2014, durante discurso do Plenário da Câmara dos
Deputados, quando o parlamentar teria dito que a deputada Maria do Rosário “não
merecia ser estuprada”. No dia seguinte, o parlamentar teria reiterado a
declaração, complementando que a deputada “não merece porque ela é muito ruim, porque ela
é muito feia, não faz meu gênero,
jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”[20].
Como resultado, o Ministério Público Federal
ofereceu denúncia e a deputada ofendida queixa-crime contra o deputado. Ambos
os pedidos foram recebidos pela maioria dos Ministros da Primeira Turma do STF
em junho de 2016.
Segundo o Relator, Ministro Luiz Fux, ainda
que as declarações tenham sido proferidas, nas duas ocasiões, dentro do recinto
do Congresso Nacional, não cabe aplicar a imunidade. Isso porque as declarações
não guardam qualquer conexão com o exercício do mandato, visto que não se
relacionam com tema presente no debate político ou de interesse do eleitorado e
da sociedade civil. Mas, ao contrário, têm o potencial de incitar a violência
contra as mulheres. Nas palavras do Relator:
[...] o emprego do vocábulo “merece”, no sentido e
contexto presentes no caso sub judice,
teve por fim conferir a este gravíssimo delito, que é o estupro, o atributo de
um prêmio, um favor, uma benesse à mulher, revelando interpretação de que o
homem estaria em posição de avaliar qual mulher “poderia” ou “mereceria” ser
estuprada. [...] O desprezo demonstrado pelo bem jurídico protegido (dignidade
sexual) reforça e incentiva a perpetuação dos traços de uma cultura que ainda
subjuga a mulher, com potencial de instigar variados grupos a lançarem sobre a
própria vítima a culpa por ser alvo de criminosos sexuais, deixando, a depender
da situação, de reprovar a violação sexual, como seria exigível mercê da expectativa
normativa.[21]
Cumpre assinalar que este voto do Ministro
Luiz Fux representa um avanço com relação à posição anterior do STF, qual seja,
de que não caberia questionar o conteúdo ou a conexão com o mandato dos
pronunciamentos dos parlamentares feitos no interior do Congresso Nacional,
dado o pressuposto de que se trataria de declarações protegidas pela
inviolabilidade.
O avanço é claro na medida em que na decisão
a favor do recebimento das denúncias contra o deputado Jair Bolsonaro a
Primeira Turma do STF controlou o conteúdo das declarações, em função da sua
relação de causalidade com o mandato parlamentar. Em sequência, o Relator
concluiu pela ausência de qualquer liame e acentuou o caráter criminoso da
declaração, ao incitar a cultura do estupro. Com razão salienta o Relator:
Num país de dimensões continentais como o Brasil, não
se podem subestimar os efeitos de discursos
que reproduzem o rebaixamento da dignidade sexual da mulher, os quais, per se, podem gerar perigosas
consequências sobre a forma como muitos irão considerar esta hedionda prática
criminosa que é o crime de estupro, podendo,
efetivamente, encorajar a sua
prática.[22]
O julgamento de ambos os processos está
pendente perante o STF. Espera-se que desfecho seja em harmonia com o argumento
aqui defendido, qual seja, de que declarações de discurso de ódio contra
minorias não sejam acobertadas pela imunidade material, a despeito de serem
realizadas no exercício de atividades parlamentares (discursos e votos) e
dentro do recinto das Casas Legislativas.
As imunidades parlamentares são prerrogativas
intrínsecas à função parlamentar, que garantem o exercício livre do mandato do
membro do Poder Legislativo. E, com isso, asseguram a própria independência do
Poder que integram. São, portanto, prerrogativas atribuídas aos parlamentares
em virtude do mandato que exercem. Logo, são prerrogativas de caráter
institucional, e não subjetiva.
As imunidades parlamentares são de dois
tipos: a material e a formal. A imunidade material ou inviolabilidade do
parlamentar é a exclusão da possibilidade jurídica de responsabilidade penal,
civil, administrativa ou política, por danos eventualmente resultantes de suas
declarações, orais ou escritas, desde que proferidas em razão das suas
atividades congressuais, no exercício e conectadas ao mandato.
O fundamento da imunidade material é impedir
que o membro do Poder Legislativo não sofra qualquer perseguição por suas
opiniões, palavras e votos. Com efeito, é notória a importância da
inviolabilidade parlamentar para o regime democrático, na medida em que busca
garantir que o representante popular exerça suas funções constitucionais com
ampla liberdade e livre de qualquer pressão, em nome dos princípios da separação
dos Poderes e da soberania popular.
Entretanto, a inviolabilidade parlamentar não
deve ser entendida como um instituto de natureza absoluta. Quer dizer, deve ser
relativizado, permitindo a responsabilização posterior do parlamentar, quando a
sua manifestação contrariar postulados centrais do Estado Democrático de
Direito, quais sejam: a dignidade humana e a proteção das minorias.
Nesse sentido, o presente trabalho conclui a
favor do afastamento da imunidade material em casos de discurso de ódio
proferidos por parlamentares. A liberdade de expressão não é absoluta,
sobretudo de indivíduos que são figuras públicas que exercem grande influência
sobre significativos setores da sociedade. O gozo da imunidade deve pressupor
responsabilidade e respeito com os princípios basilares da ordem constitucional
vigente. Essa é a leitura do instituto da imunidade parlamentar compatível com
o Estado Democrático de Direito.
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___
Eleonora Mesquita Ceia
eleonora.ceia@ibmecrj.br
Doutora em Direito pela Universidade do Sarre - UdS,
Saarbrücken, Alemanha (2010). Mestre em Direito Europeu pelo Europa-Institut da
Universidade do Sarre - UdS, Saarbrücken, Alemanha (2005). Bacharel em Direito
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, (2002). Ex-bolsista da
Fundação Konrad Adenauer (KAS). Professora Adjunta I do Curso de Graduação em
Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Grupo Ibmec-RJ. Membro do
Conselho Nacional da Fundação Konrad Adenauer (KAS).
[1] De acordo com a doutrina de Daniel Sarmento o princípio da
dignidade humana relaciona-se diretamente com a noção de pessoa humana derivada
da interpretação da CRFB/88 baseada na moralidade crítica. A partir dessa noção
o autor apresenta os elementos essenciais do conteúdo da dignidade humana,
quais sejam: “o valor intrínseco da pessoa que
veda a sua instrumentalização em proveito de interesses de terceiros ou de
metas coletivas; a igualdade, que
implica a rejeição das hierarquias sociais e culturais e impõe que se busque a
sua superação concreta; a autonomia,
tanto na sua dimensão privada, ligada à autodeterminação individual, como na
pública, relacionada à democracia; o mínimo existencial
que envolve a garantia das condições materiais indispensáveis para a vida
digna; e o reconhecimento, que se conecta com o
respeito à identidade individual e coletiva das pessoas nas instituições,
práticas sociais e relações intersubjetivas”. [Grifos do texto original]. Ver
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana:
conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 92.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2017, p. 269-271.
[3] SARLET, 2017, p. 274.
[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal
Anotada. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 823-825.
[5] Em dezembro de 2014, o referido deputado, durante um discurso no
Plenário da Câmara dos Deputados, afirmou que só não estupraria a deputada
federal Maria do Rosário, porque ela não merecia. Um dia depois, ele reiterou
tal afirmação em entrevista a um jornal de Porto Alegre. Ver EMPRESA BRASIL DE
COMUNICAÇÃO. STF mantém ação contra Bolsonaro por
incitação ao crime de estupro. 7 de março de 2017. Disponível em:
<agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-03/STF-mantem-acao-contra-Bolsonaro-por-incitacao-ao-crime-de-estupro>.
Acesso em: 15 abr. 2017.
[6] CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013, p. 1072.
[7] CANOTILHO, 2013, p. 1072.
[8] Os deputados estaduais gozam das mesmas imunidades formal e
material dos parlamentares federais. Por outro lado, os vereadores possuem
apenas a imunidade material limitada ao território do seu respectivo Município.
Ver CANOTILHO, 2013, p. 1073.
[9] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito
Constitucional. 14. ed. Saraiva: São Paulo, 2016, p. 987.
[10] Para uma análise completa do Caso Ellwanger ver MEYER-PFLUG,
Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e
Discurso de ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.
198-218.
[11] STF. Pleno. HC Nº 82.424-2/RS, Relator Ministro Moreira Alves, 17
de setembro de 2003, p. 525-526.
[12] MEYER-PFLUG, 2009, p. 92.
[13] Essa posição encontra apoio na doutrina. Ver SCHÄFER, Gilberto et al.
Discurso de ódio. Da abordagem conceitual ao discurso
parlamentar. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 52, n. 207, 2015, p. 153.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A
Constituição e o Supremo. 5. ed. Brasília: STF, 2016, p. 691.
[15] BULOS, 2012, p. 830.
[16] BRASIL, 2016, p. 691.
[17] SCHÄFER, 2015, p. 150.
[18] REDE BRASIL ATUAL. Bolsonaro homenageia torturador em seu voto pelo
impeachment. 18 de abril de 2016. Disponível em:
<redebrasilatual.com.br/politica/2016/04/bolsonaro-homenageia-torturador-em-seu-voto-pelo-impeachment-2649.html>.
Acesso em: 18 abr. 2017.
[19] JORNAL DO BRASIL. Palestra de Bolsonaro no clube Hebraica causa
indignação de membros judeus no Rio. 5 de abril de 2017. Disponível em:
<http://www.jb.com.br/rio/noticias/2017/04/05/palestra-de-bolsonaro-no-clube-hebraica-causa-indignacao-de-membros-judeus-no-rio/>.
Acesso em: 19 abr. 2017.
[20] STF. Primeira Turma. Inquérito 3.932/DF, Relator Ministro Luiz Fux,
Inteiro Teor, 21 de junho de 2016, p. 7.
[21] STF. Primeira Turma. Inquérito 3.932/DF, Relator Ministro Luiz Fux,
Inteiro Teor, 21 de junho de 2016, p. 3-4.
[22] STF. Primeira Turma. Inquérito 3.932/DF, Relator Ministro Luiz Fux,
Inteiro Teor, 21 de junho de 2016, p. 34.