Imunidade parlamentar e discurso de ódio no Brasil

 

 

Parliamentary immunity and hate speech in Brazil

 

 

 

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Eleonora Mesquita Ceia

eleonora.ceia@ibmecrj.br

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Brasil

 

 

 

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RAIGAL. Revista Interdisciplinaria de Ciencias Sociales

Nº3, octubre 2016-marzo 2017 (Sección Dossier, pp. 16-26)

e-ISSN 2469-1216

Villa María: IAPCS, UNVM

http://raigal.unvm.edu.ar

Recibido: 05/06/2017 - Aprobado: 16/07/2017

 

 

 
 

 

 


Resumo

O presente artigo discute a relação entre o instituto da imunidade parlamentar e o direito fundamental à liberdade de expressão a partir da interpretação sistemática dos princípios da Constituição brasileira de 1988. A principal hipótese do trabalho é a de que a imunidade parlamentar no Brasil não abarca o chamado discurso de ódio, que configura manifestação ilegítima do pensamento de acordo com a Constituição brasileira. A recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal confirma essa hipótese ao consagrar que a imunidade parlamentar não é um instituto de natureza absoluta, sujeitando-se à ponderação com o princípio da dignidade humana.

 

Palavras-chave: Imunidade parlamentar; Liberdade de expressão; Discurso de ódio; Brasil; Supremo Tribunal Federal

 

 

Abstract

The present article discusses the relationship between the institute of parliamentary immunity and the fundamental right of freedom of speech from a systematic interpretation of the principles laid down in the Brazilian Constitution of 1988. The main hypothesis of the work is that in Brazil the parliamentary immunity does not include the so-called hate speech, which configures an unlawful manifestation of thought according to the Brazilian Constitution. The recent jurisprudence of the Brazilian Supreme Federal Court confirms this hypothesis in providing that the nature of the parliamentary immunity is not absolute and consequently it can be weighed against the principle of human dignity.

 

Keywords: Parliamentary immunity; Freedom of speech; Hate speech; Brazil; Brazilian Supreme Federal Court

 

 

 

Imunidade parlamentar e discurso de ódio no Brasil

 

 

 

 

Introdução

A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988 (CRFB/88) constitui o principal marco jurídico do período da redemocratização do País, após o fim de regime ditatorial civil-militar (1964-1985). O texto constitucional, com efeito, evidencia em diferentes passagens o seu desejo de romper com a ordem constitucional pretérita. Servem de exemplo: a vedação da censura nos termos dos artigos 5º inciso IX e 220 §1º; a proibição da cassação de direitos políticos conforme o artigo 15 caput; mas, sobretudo, a qualificação da República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito segundo o seu artigo 1º caput.

O Estado Democrático de Direito caracteriza-se por ser um Estado onde a aquisição e o exercício do poder político são legítimos, ou seja, todos e todas têm a capacidade, em condições iguais, de participar de forma ativa e responsável da vida política do Estado. O Estado Democrático de Direito apresenta duas dimensões: uma organizatória e procedimental; e outra material. A primeira diz respeito à garantia dos seguintes princípios: separação dos Poderes, legalidade estrita e da segurança jurídica, entre outros. Por sua vez, a segunda ressalta a proteção do princípio da dignidade humana[1], do qual decorrem os direitos fundamentais em geral (individuais, coletivos e difusos). Em síntese, cuida-se de um modelo de Estado que pretende se mostrar como uma evolução em relação aos modelos liberal e social de Estado, ao conjugar a participação política, as liberdades individuais e a justiça social.[2]

Nessa perspectiva, a noção de democracia, intrínseca ao Estado Democrático de Direito, baseia-se no chamado princípio majoritário – tomada de decisão livre por uma maioria, da qual resultam normas vinculantes para todos – conjugado com a imposição do respeito pelas minorias. A proteção das minorias dentro de um governo da maioria pressupõe, de um lado, o direito das minorias de participarem do processo deliberativo e, de outro, a submissão da maioria aos limites constitucionais, a saber, os direitos fundamentais, os quais:

[...] representam a essência da proteção das minorias, visto que uma violação de um direito fundamental, na condição de direito subjetivo individual, poderá justificar a impugnação (pelos meios postos à disposição pelo Estado de Direito) de atos que resultam da deliberação das maiorias, razão pela qual os direitos fundamentais costumam ser também chamados (Dworkin) de trunfos contra a maioria. [Grifo do texto original][3]

 

O funcionamento efetivo do regime democrático serve-se de variados institutos, dentre os quais merecem destaque as imunidades parlamentares, que consistem nos direitos, deveres e prerrogativas dos membros do Poder Legislativo. Há a imunidade material – que assegura a liberdade de opinião, palavra e voto ao parlamentar – e a imunidade formal, que protege o parlamentar de prisões ilegais ou arbitrárias.

Originadas da Inglaterra, as imunidades parlamentares têm como propósito garantir que os congressistas desempenhem suas funções constitucionais com ampla independência e liberdade. Vale dizer, objetivam a preservação do princípio da separação dos Poderes. Logo, as imunidades parlamentares existem para proteger a instituição do Poder Legislativo, e não a pessoa individualmente considerada do parlamentar. Ao lado disso, cumpre enfatizar que apenas as manifestações estritamente ligadas à atividade parlamentar são abarcadas pela imunidade, sob pena desta se transfigurar em verdadeiro privilégio e, consequentemente, violar o princípio republicano.[4]

O problema proposto pelo presente trabalho é determinar se no Brasil há limites para a imunidade material parlamentar, ou seja, se o membro do Poder Legislativo, no exercício das funções inerentes ao seu mandato, possui um direito fundamental absoluto à liberdade de expressão. A partir da revisão bibliográfica das principais obras a respeito do tema defende-se a hipótese de que a imunidade parlamentar no Brasil não abarca o chamado discurso de ódio, que configura manifestação ilegítima do pensamento de acordo com a CRFB/88.

O objetivo do artigo é, portanto, discutir a relação entre o instituto da imunidade parlamentar e o direito fundamental à liberdade de expressão a partir da interpretação sistemática dos princípios da CRFB/88. A análise desta questão justifica-se pelo crescente número de casos de discursos de ódio protagonizados por parlamentares brasileiros no desempenho das suas funções congressuais. Entre tais casos destacam-se as manifestações do deputado federal Jair Bolsonaro, quem responde a processo criminal por incitação ao crime de estupro perante o Supremo Tribunal Federal (STF)[5].

O artigo estrutura-se da seguinte forma: a primeira seção analisa a regulação do instituto da imunidade parlamentar pela CRFB/88. Em seguida, a segunda seção cuida do exercício da liberdade de expressão no direito brasileiro, ressaltando a conceituação de discurso de ódio. Após, a terceira seção examina a jurisprudência do STF com respeito ao escopo e aos limites da inviolabilidade do parlamentar quanto as suas opiniões e palavras. E, por último a conclusão apresenta em síntese os principais argumentos e resultados produzidos pelo trabalho.

 

1. As imunidades parlamentares à luz da CRFB/88

A origem das imunidades parlamentares remonta ao ilustre documento resultante da Revolução Gloriosa de 1688, na Inglaterra, a saber, a Bill of Rights, que consagrava a liberdade de palavra ao parlamentar. Esse direito protegia o parlamentar dos arbítrios do monarca, garantindo ao parlamentar a certeza de que não seria questionado perante qualquer tribunal em razão de suas opiniões proferidas no Parlamento.

Posteriormente, outros países (Estados Unidos, França e Alemanha, por exemplo) incorporaram ao seu direito o instituto das imunidades parlamentares, mantendo o entendimento originário de que se trata de instituto de proteção do Parlamento frente às pressões dos demais Poderes, e não da pessoa do parlamentar. Por consequência, nesses países a imunidade material parlamentar inclui tão somente as opiniões e palavras proferidas dentro do local do Parlamento e que sejam diretamente vinculadas ao exercício do mandato parlamentar.[6]

Por sua vez, outro grupo de países (Espanha, Itália, Argentina e Brasil, por exemplo) adotam uma concepção de imunidade parlamentar ampla, que enfrenta críticas, uma vez que permite uma aplicação distorcida do instituto.

Tais países, em geral, admitem que as imunidades, materiais e formais, alcançam o parlamentar dentro ou fora do recinto congressual, bem como os imuniza nas esferas cível, administrativa e penal, por votos, palavras ou opiniões praticados no exercício do mandato legislativo (prática in officio), ou em função dele (prática propter officium).[7]

 

Contudo, como será visto adiante, a recente jurisprudência do STF defende uma posição mais moderada com relação à aplicação da imunidade material parlamentar. Vale dizer, pretende limitar a aplicação da imunidade apenas à atividade política do parlamentar e dentro dos limites fixados pelos princípios constitucionais, de forma a coibir regalias e abusos.

A Seção V da CRFB/88 (artigos 53 a 56) disciplina o chamado Estatuto dos Congressistas, que consiste no conjunto de direitos, deveres e prerrogativas de deputados e senadores federais. A eles são concedidas: i) a prerrogativa de foro perante o STF; ii) a imunidade material, isto é, os parlamentares são invioláveis nas suas opiniões, palavras e votos; e iii) a imunidade formal, os parlamentares não estão sujeitos à prisão, salvo em caso de flagrante delito de crime inafiançável.

Importa frisar que tanto a imunidade formal quanto a imunidade material são aplicadas quando o parlamentar esteja exercendo o mandato ou quando estiver desempenhando atividade em razão do mandato, dentro ou fora do recinto do Congresso Nacional.[8] Em função do problema central do trabalho a chamada imunidade material será analisada com mais atenção.

Nos termos do artigo 53 da CRFB/88 “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Trata-se de relevante prerrogativa institucional, visto que possibilita o membro do Poder Legislativo de discursar, opinar e votar com liberdade, isto é, livre de constrangimento ou pressão.

Esse dispositivo exclui qualquer tipo de responsabilidade (penal, civil, administrativa ou política) da pessoa do parlamentar pelo conteúdo dos seus votos, opiniões e palavras emitidos, por qualquer meio, dentro ou fora do recinto do Congresso Nacional, desde que no exercício do seu mandato ou em função do mesmo (em atividades imputáveis ao exercício do mandato). Em outros termos, o parlamentar será responsabilizado caso não se comprove a relação de causalidade entre a manifestação de pensamento e o exercício do mandato político.

Para fins de defesa da conclusão do presente trabalho vale criticar a interpretação ampla do termo “quaisquer” do artigo 53. Isso porque uma interpretação deste tipo permitiria que qualquer palavra, opinião ou discurso parlamentar – inclusive aqueles de incitação ao ódio, à discriminação e à violência – fosse considerado inviolável, não importando se a manifestação é vinculada ao mandato ou não[9].

Portanto, argumenta-se aqui em favor de uma inviolabilidade relativa, isto é, a imunidade parlamentar não pode servir de justificativa para manifestações contrárias aos valores constitucionais, como, por exemplo, discursos racistas e discriminatórios em razão de gênero, origem social, orientação afetiva etc. Nessas hipóteses, a imunidade material deveria ser afastada e o parlamentar responsabilizado nas esferas penal, civil, administrativa e política.

 

2. A liberdade de expressão à luz da CRFB/88

A liberdade de expressão ou de manifestação do pensamento abrange toda opinião, convicção, comentário ou julgamento sobre qualquer tema, de interesse público ou particular, ou sobre qualquer pessoa (pública ou privada), como também a comunicação sobre a veracidade dos fatos (informações).

Daí a importância da liberdade de expressão para a formação da personalidade do indivíduo, bem como para a preservação do regime democrático, dado que assegura a pluralidade de ideias e a liberdade de criticar agentes políticos como forma de fiscalizar a atividade estatal.

A liberdade de expressão é definida como um direito defensivo, isto é, exige que o Estado se abstenha de exercer censura, isto é, de interferir no conteúdo da manifestação do pensamento. Nesse sentido, a CRFB/88 veda a censura, que consiste no controle prévio do Estado sobre o conteúdo de uma mensagem. Contudo, a proibição da censura não impede, que o indivíduo seja responsabilizado posteriormente pelas consequências cíveis e penais daquilo que expressou.

Logo, a liberdade de expressão não é um direito fundamental de natureza absoluta. É o que preceitua o artigo 220 caput da CRFB/88: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” [Grifo da autora]. Quer dizer, a liberdade de expressão é um direito fundamental, cujo exercício pode ser limitado (posteriormente à manifestação) em favor dos demais valores constitucionais, sobretudo, do princípio da dignidade humana. Isso porque tal princípio é a diretriz para a interpretação de todo ordenamento jurídico, que proíbe qualquer tentativa de instrumentalização ou inferiorização da pessoa humana por parte do Estado ou de qualquer outro indivíduo.

Seguindo esta linha, o STF entende que a liberdade de expressão não pode abrigar manifestações de cunho racista, ou seja, o discurso de ódio não é tolerado pela ordem constitucional brasileira. Tal interpretação foi estabelecida pelo STF no julgamento do chamado “Caso Ellwanger”[10], no qual restou decidido pela maioria dos Ministros do STF que a propagação de ideias antissemitas configura crime, pois incita à discriminação racial e, portanto, não é conduta amparada pela liberdade de expressão. No conflito entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a liberdade de expressão, o primeiro deve prevalecer.

Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra.[11]

 

            O discurso de ódio é a manifestação tendente a insultar, constranger ou intimidar minorias, de modo a instigar violência ou discriminação contra essas pessoas. Em geral, tal discurso compreende ideias que violam a dignidade de pessoas em razão da sua etnia, religião, gênero, origem social ou orientação afetiva. Em outras palavras, o discurso de ódio ofende e inferioriza as pessoas em razão da sua identidade individual ou coletiva, elemento essencial da dignidade humana[12].

O sistema constitucional brasileiro não admite a proteção do discurso de ódio. Conforme anteriormente explicado, no embate entre a dignidade humana e a liberdade de expressão, a primeira deve prevalecer, devido à sua condição de princípio norteador de todo o ordenamento jurídico, de que derivam os direitos fundamentais. A lógica do constituinte de 1988 é contrária à censura. Logo, o indivíduo não pode ser proibido de forma preventiva de manifestar o seu pensamento, porém, pode ser responsabilizado posteriormente caso sua manifestação infrinja a dignidade humana, como é o caso do discurso de ódio.

O presente trabalho defende que tal responsabilização seja aplicada também no caso dos parlamentares. Na hipótese de um membro do Poder Legislativo, no exercício da sua função parlamentar, proferir discurso de ódio, violando, o princípio basilar da República (a dignidade humana), sua imunidade material deve ser afastada e gerar, com isso, a sua responsabilização nas esferas cabíveis. Caso contrário, haveria um instituto de cunho absoluto no direito brasileiro, o que contraria a interpretação harmoniosa entre os princípios constitucionais[13].

 

3. A inviolabilidade parlamentar na jurisprudência do STF

O STF possui jurisprudência consolidada no sentido de que a imunidade material do artigo 53 da CRFB/88 compreende tão somente atos funcionais, isto é, atos estritamente conectados ao exercício do mandato parlamentar. Nesse sentido, afirmou no julgamento do Inquérito 2.134, Relator Ministro Joaquim Barbosa, de março de 2006, que “a imunidade material prevista no art. 53, caput, da Constituição não é absoluta, pois somente se verifica nos casos em que a conduta possa ter alguma relação com o exercício do mandato parlamentar”[14].

Da mesma forma, o STF acompanha a doutrina ao entender que a inviolabilidade parlamentar nas suas palavras e opiniões protege o membro do Poder Legislativo dentro e fora do recinto do Congresso Nacional. Quer dizer, a imunidade material não se restringe ao espaço físico do Parlamento. Assim, a inviolabilidade se estende também para atos realizados fora do Congresso Nacional, inclusive para entrevistas jornalísticas; transmissão, para a imprensa, do conteúdo de pronunciamentos ou de relatórios produzidos nas Casas Legislativas; e também para as declarações emitidas aos meios de comunicação[15].

Todavia, a jurisprudência do STF diferencia as manifestações declaradas dentro e fora do recinto do Parlamento quanto à relação de causalidade entre a manifestação e a função parlamentar. Caso a manifestação ocorra dentro do recinto do Congresso pressupõe-se necessariamente a favor do nexo de causalidade entre a manifestação e o exercício da atividade parlamentar e, por consequência, a favor da imunidade. Ao revés, caso a manifestação ocorra fora do recinto do Congresso, faz-se necessário comprovar a relação de causalidade entre a manifestação e a função parlamentar. Nesse sentido, declarou o Ministro Carlos Britto no Inquérito Nº 1.958, julgado em 2004:

Assim, é de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento. Somente nestas últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento é de se perquirir da chamada “conexão com o exercício do mandato ou com a condição parlamentar” (Inq 390 e 1.710). Para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa. [Grifo da autora][16]

 

É criticável o posicionamento do STF acima exposto. Cabe questionar sim o conteúdo da manifestação do pensamento feita dentro do recinto parlamentar, sobretudo quando caracterizado o discurso de ódio na fala do membro do Poder Legislativo.

O discurso de ódio no âmbito parlamentar já foi examinado pelo STF no Inquérito 3.590/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em agosto de 2014. Tratava-se de denúncia proposta pelo Ministério Público Federal contra o deputado federal Marco Feliciano por proferir declaração de cunho discriminatório contra a comunidade LGBT, por meio da rede social Twitter. O STF, contudo, rejeitou a denúncia com base na atipicidade do fato, embora reconhecesse o conteúdo reprovável da declaração do parlamentar[17].

Como já explicitado defende-se aqui o afastamento da inviolabilidade da palavra do membro do Poder Legislativo quando a manifestação deste for de cunho odioso, discriminatório ou atentatório contra minorias com fundamento no Estado Democrático de Direito. A defesa da relatividade da imunidade material parlamentar é justificada pelo número crescente de casos de discursos de ódio protagonizados por políticos brasileiro. Um caso concreto de repercussão nacional será analisado a seguir.

 

3.1 Os processos criminais contra o Deputado Jair Bolsonaro perante o STF

            Jair Bolsonaro é um político brasileiro, atualmente cumprindo seu sexto mandato como deputado federal, filiado ao Partido Social Cristão (PSC). Defende posições de cunho nacionalista e retrógrado, na sua grande parte, contrárias aos direitos de minorias. De fato, o parlamentar em questão é conhecido por suas declarações de natureza discriminatória e violenta.

Durante a votação do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016, o referido deputado fez homenagem a conhecido torturador da ditadura civil-militar brasileira[18]. Mais recentemente, em abril de 2017, durante um evento no Clube Hebraica, instituição tradicional da comunidade judaica do Rio de Janeiro, o deputado proferiu declaração de conteúdo racista, ao afirmar que membros de comunidades quilombolas “não servem nem para procriar”[19].

Atualmente o deputado responde a dois processos criminais perante o STF pela suposta prática dos delitos de incitação ao crime de estupro e injúria. Segundo os autos dos processos, os crimes teriam sido cometidos em dezembro de 2014, durante discurso do Plenário da Câmara dos Deputados, quando o parlamentar teria dito que a deputada Maria do Rosário “não merecia ser estuprada”. No dia seguinte, o parlamentar teria reiterado a declaração, complementando que a deputada “não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece[20].

Como resultado, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia e a deputada ofendida queixa-crime contra o deputado. Ambos os pedidos foram recebidos pela maioria dos Ministros da Primeira Turma do STF em junho de 2016.

Segundo o Relator, Ministro Luiz Fux, ainda que as declarações tenham sido proferidas, nas duas ocasiões, dentro do recinto do Congresso Nacional, não cabe aplicar a imunidade. Isso porque as declarações não guardam qualquer conexão com o exercício do mandato, visto que não se relacionam com tema presente no debate político ou de interesse do eleitorado e da sociedade civil. Mas, ao contrário, têm o potencial de incitar a violência contra as mulheres. Nas palavras do Relator:

[...] o emprego do vocábulo “merece”, no sentido e contexto presentes no caso sub judice, teve por fim conferir a este gravíssimo delito, que é o estupro, o atributo de um prêmio, um favor, uma benesse à mulher, revelando interpretação de que o homem estaria em posição de avaliar qual mulher “poderia” ou “mereceria” ser estuprada. [...] O desprezo demonstrado pelo bem jurídico protegido (dignidade sexual) reforça e incentiva a perpetuação dos traços de uma cultura que ainda subjuga a mulher, com potencial de instigar variados grupos a lançarem sobre a própria vítima a culpa por ser alvo de criminosos sexuais, deixando, a depender da situação, de reprovar a violação sexual, como seria exigível mercê da expectativa normativa.[21]

 

Cumpre assinalar que este voto do Ministro Luiz Fux representa um avanço com relação à posição anterior do STF, qual seja, de que não caberia questionar o conteúdo ou a conexão com o mandato dos pronunciamentos dos parlamentares feitos no interior do Congresso Nacional, dado o pressuposto de que se trataria de declarações protegidas pela inviolabilidade.

O avanço é claro na medida em que na decisão a favor do recebimento das denúncias contra o deputado Jair Bolsonaro a Primeira Turma do STF controlou o conteúdo das declarações, em função da sua relação de causalidade com o mandato parlamentar. Em sequência, o Relator concluiu pela ausência de qualquer liame e acentuou o caráter criminoso da declaração, ao incitar a cultura do estupro. Com razão salienta o Relator:

Num país de dimensões continentais como o Brasil, não se podem subestimar os efeitos de discursos que reproduzem o rebaixamento da dignidade sexual da mulher, os quais, per se, podem gerar perigosas consequências sobre a forma como muitos irão considerar esta hedionda prática criminosa que é o crime de estupro, podendo, efetivamente, encorajar a sua prática.[22]

 

O julgamento de ambos os processos está pendente perante o STF. Espera-se que desfecho seja em harmonia com o argumento aqui defendido, qual seja, de que declarações de discurso de ódio contra minorias não sejam acobertadas pela imunidade material, a despeito de serem realizadas no exercício de atividades parlamentares (discursos e votos) e dentro do recinto das Casas Legislativas.

 

Conclusão

As imunidades parlamentares são prerrogativas intrínsecas à função parlamentar, que garantem o exercício livre do mandato do membro do Poder Legislativo. E, com isso, asseguram a própria independência do Poder que integram. São, portanto, prerrogativas atribuídas aos parlamentares em virtude do mandato que exercem. Logo, são prerrogativas de caráter institucional, e não subjetiva.

As imunidades parlamentares são de dois tipos: a material e a formal. A imunidade material ou inviolabilidade do parlamentar é a exclusão da possibilidade jurídica de responsabilidade penal, civil, administrativa ou política, por danos eventualmente resultantes de suas declarações, orais ou escritas, desde que proferidas em razão das suas atividades congressuais, no exercício e conectadas ao mandato.

O fundamento da imunidade material é impedir que o membro do Poder Legislativo não sofra qualquer perseguição por suas opiniões, palavras e votos. Com efeito, é notória a importância da inviolabilidade parlamentar para o regime democrático, na medida em que busca garantir que o representante popular exerça suas funções constitucionais com ampla liberdade e livre de qualquer pressão, em nome dos princípios da separação dos Poderes e da soberania popular.

Entretanto, a inviolabilidade parlamentar não deve ser entendida como um instituto de natureza absoluta. Quer dizer, deve ser relativizado, permitindo a responsabilização posterior do parlamentar, quando a sua manifestação contrariar postulados centrais do Estado Democrático de Direito, quais sejam: a dignidade humana e a proteção das minorias.

Nesse sentido, o presente trabalho conclui a favor do afastamento da imunidade material em casos de discurso de ódio proferidos por parlamentares. A liberdade de expressão não é absoluta, sobretudo de indivíduos que são figuras públicas que exercem grande influência sobre significativos setores da sociedade. O gozo da imunidade deve pressupor responsabilidade e respeito com os princípios basilares da ordem constitucional vigente. Essa é a leitura do instituto da imunidade parlamentar compatível com o Estado Democrático de Direito.

 


 

Referências

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JORNAL DO BRASIL. Palestra de Bolsonaro no clube Hebraica causa indignação de membros judeus no Rio. 5 de abril de 2017. Disponível em: <http://www.jb.com.br/rio/noticias/2017/04/05/palestra-de-bolsonaro-no-clube-hebraica-causa-indignacao-de-membros-judeus-no-rio/>. Acesso em: 19 abr. 2017.

 

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e Discurso de ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

 

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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. Saraiva: São Paulo, 2016.

 

 

 

 

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Sobre la autora:

Eleonora Mesquita Ceia

eleonora.ceia@ibmecrj.br

Doutora em Direito pela Universidade do Sarre - UdS, Saarbrücken, Alemanha (2010). Mestre em Direito Europeu pelo Europa-Institut da Universidade do Sarre - UdS, Saarbrücken, Alemanha (2005). Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, (2002). Ex-bolsista da Fundação Konrad Adenauer (KAS). Professora Adjunta I do Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Grupo Ibmec-RJ. Membro do Conselho Nacional da Fundação Konrad Adenauer (KAS).

 



[1] De acordo com a doutrina de Daniel Sarmento o princípio da dignidade humana relaciona-se diretamente com a noção de pessoa humana derivada da interpretação da CRFB/88 baseada na moralidade crítica. A partir dessa noção o autor apresenta os elementos essenciais do conteúdo da dignidade humana, quais sejam: “o valor intrínseco da pessoa que veda a sua instrumentalização em proveito de interesses de terceiros ou de metas coletivas; a igualdade, que implica a rejeição das hierarquias sociais e culturais e impõe que se busque a sua superação concreta; a autonomia, tanto na sua dimensão privada, ligada à autodeterminação individual, como na pública, relacionada à democracia; o mínimo existencial que envolve a garantia das condições materiais indispensáveis para a vida digna; e o reconhecimento, que se conecta com o respeito à identidade individual e coletiva das pessoas nas instituições, práticas sociais e relações intersubjetivas”. [Grifos do texto original]. Ver SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 92.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 269-271.

[3] SARLET, 2017, p. 274.

[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 823-825.

[5] Em dezembro de 2014, o referido deputado, durante um discurso no Plenário da Câmara dos Deputados, afirmou que só não estupraria a deputada federal Maria do Rosário, porque ela não merecia. Um dia depois, ele reiterou tal afirmação em entrevista a um jornal de Porto Alegre. Ver EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO. STF mantém ação contra Bolsonaro por incitação ao crime de estupro. 7 de março de 2017. Disponível em: <agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-03/STF-mantem-acao-contra-Bolsonaro-por-incitacao-ao-crime-de-estupro>. Acesso em: 15 abr. 2017.

[6] CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1072.

[7] CANOTILHO, 2013, p. 1072.

[8] Os deputados estaduais gozam das mesmas imunidades formal e material dos parlamentares federais. Por outro lado, os vereadores possuem apenas a imunidade material limitada ao território do seu respectivo Município. Ver CANOTILHO, 2013, p. 1073.

[9] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. Saraiva: São Paulo, 2016, p. 987.

[10] Para uma análise completa do Caso Ellwanger ver MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e Discurso de ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 198-218.

[11] STF. Pleno. HC Nº 82.424-2/RS, Relator Ministro Moreira Alves, 17 de setembro de 2003, p. 525-526.

[12] MEYER-PFLUG, 2009, p. 92.

[13] Essa posição encontra apoio na doutrina. Ver SCHÄFER, Gilberto et al. Discurso de ódio. Da abordagem conceitual ao discurso parlamentar. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 52, n. 207, 2015, p. 153.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo. 5. ed. Brasília: STF, 2016, p. 691.

[15] BULOS, 2012, p. 830.

[16] BRASIL, 2016, p. 691.

[17] SCHÄFER, 2015, p. 150.

[18] REDE BRASIL ATUAL. Bolsonaro homenageia torturador em seu voto pelo impeachment. 18 de abril de 2016. Disponível em: <redebrasilatual.com.br/politica/2016/04/bolsonaro-homenageia-torturador-em-seu-voto-pelo-impeachment-2649.html>. Acesso em: 18 abr. 2017.

[19] JORNAL DO BRASIL. Palestra de Bolsonaro no clube Hebraica causa indignação de membros judeus no Rio. 5 de abril de 2017. Disponível em: <http://www.jb.com.br/rio/noticias/2017/04/05/palestra-de-bolsonaro-no-clube-hebraica-causa-indignacao-de-membros-judeus-no-rio/>. Acesso em: 19 abr. 2017.

[20] STF. Primeira Turma. Inquérito 3.932/DF, Relator Ministro Luiz Fux, Inteiro Teor, 21 de junho de 2016, p. 7.

[21] STF. Primeira Turma. Inquérito 3.932/DF, Relator Ministro Luiz Fux, Inteiro Teor, 21 de junho de 2016, p. 3-4.

[22] STF. Primeira Turma. Inquérito 3.932/DF, Relator Ministro Luiz Fux, Inteiro Teor, 21 de junho de 2016, p. 34.